Diamantino Fernandes Trindade e Lareserá
Ante
o intenso debate sobre as origens da Umbanda, no qual se tornou um lugar comum
denominar o relato de Zélio de Moraes como “mito de fundação”, reflexo de uma
estratégia deliberada para embranquece-la e dela extirpar o seu veio africano,
os autores deste texto, que antes já haviam publicado material acadêmico a
respeito, optaram por redigi-lo no formato de perguntas e respostas, a fim de
facilitar o acompanhamento das suas conclusões.
Ao
tecerem as conclusões abaixo, seus autores buscaram basear-se em fatos,
esforçando-se em se despir de qualquer inclinação ideológica.
P: O que é o
mito de fundação da Umbanda?
R: Para algumas
correntes acadêmicas, o conhecido relato de Zélio de Moraes a respeito do
advento do Caboclo das Sete Encruzilhadas e da formação da Umbanda é tão
somente um mito, como tantos outros encontrados nas origens das mais diferentes
manifestações religiosas, voltado a, deliberadamente, “embranquecer” a Umbanda,
de forma a, extirpando-lhe o elemento africano, torná-la uma religião mais palatável
à classe média carioca, branca e burguesa da primeira metade do século XX.
P: Entendem
adequada essa alcunha de mito de fundação ao relato de Zélio de Moraes?
R: Será adequada se
e somente se as pesquisas acadêmicas chegarem à conclusão de que, antes de
Zélio de Moraes, havia um culto organizado nos exatos moldes por ele
preconizados e denominado Umbanda.
P: Mas a
palavra Umbanda não existia muito antes desse relato atribuído a Zélio de
Moraes?
R: Sim, não há
dúvida. A palavra “umbanda” é muito antiga, sendo originária do quimbundo e
significando, em linhas gerais, “arte de cura”.
P: E já não
havia, antes de Zélio de Moraes, manifestações mediúnicas de africanos,
indígenas e de entidades denominadas Exus?
R: Sim, certamente.
Há inúmeros cultos anteriores ao relato de Zélio de Moraes que continham todos
esses elementos como, por exemplo, a Cabula e a Macumba.
P: Não havia,
também, nesses cultos, elementos idênticos aos da religião umbandista, como o
uso de pemba, pólvora, tabaco, álcool, cânticos acompanhados ou não de
instrumentos de percussão, defumação, velas etc.?
S: Sim, isso é fato.
P: Se é assim,
pode-se concluir que a Umbanda é anterior a Zélio de Moraes?
R: Os elementos
próprios do culto são sim anteriores ao relato de Zélio de Moraes, mas disso
não decorre que a Umbanda, enquanto movimento religioso estruturado a partir
desses elementos, seja mais antiga do que esse registro histórico de caráter
oral.
P: Poderiam
explicar melhor?
R: Certamente. Não
há registros históricos, ao menos por enquanto, anteriores a Zélio de Moraes que
atestem a existência de um movimento religioso assim estruturado, com elementos
doutrinários e práticos desse modo definidos, sob a denominação Umbanda. Em outras
palavras, não há fontes que atestem a existência de um culto denominado Umbanda,
que seja formado da fusão de elementos sabidamente mais antigos como o transe
mediúnico de africanos, indígenas e exus, o uso do tabaco e do álcool, de pemba
e de pólvora, de cânticos e instrumentos de percussão, antes do relato de Zélio
de Moraes. Dizendo ainda de outro modo, tudo isso existia antes de Zélio de
Moraes, inclusive a palavra umbanda, mas não sob a forma de um culto organizado
e assim denominado.
P: E quanto à
denominação desse culto? É verdade que Zélio de Moraes, inicialmente, chamou-o
de outros nomes, como Alabanda?
R: Sim, é verdade.
Posteriormente, Zélio de Moraes optou por se valer da já existente e conhecida
palavra Umbanda para denominar o culto por ele criado a partir de elementos
ritualísticos também preexistentes.
P: Diante
disso tudo, não seria mais correto considerar-se o relato de Zélio de Moraes um
autêntico mito religioso de fundação?
R: Se as pesquisas
acadêmicas vierem a comprovar a inexatidão desse relato, seremos os primeiros a
anunciá-las em nossos estudos sobre o tema. Enquanto isso, na falta de qualquer
outra fonte histórica, tomamos como verdade científica relativa (verdade
relativa de ponta) o relato desse homem que, repita-se, amalgamou elementos
doutrinários e ritualísticos preexistentes sob um nome também preexistente.
P: Zélio de
Moraes, portanto, não foi o criador desses elementos presentes no culto
umbandista?
R: Não foi. Zélio de
Moraes não foi o primeiro a incorporar entidades espirituais do panteão
afro-brasileiro, tampouco foi o pioneiro no uso litúrgico de velas, tabaco,
álcool, pemba, ponteiros, pólvora, cânticos etc. Tampouco Zélio de Moraes
cunhou a palavra Umbanda. Repita-se: Zélio de Moraes tomou todos esses
elementos e, com base neles, estruturou um culto ao qual, ao final, denominou
Umbanda.
P: Ainda
assim, é inegável que Zélio de Moraes não incluiu, no seu culto religioso,
diversos elementos da macumba carioca, que era um de seus referenciais.
Concordam com essa afirmação?
R: Sim. Zélio de
Moraes deixou de fora do culto por ele criado elementos por ele considerados
inadequados.
P: Por que
inadequados?
R: Sempre se
abstraindo as afirmações baseadas em revelação mediúnica, já que aqui se
pretende fazer uma análise meramente factual e acadêmica do ocorrido, é
importante lembrar que a família de Zélio de Moraes era católica e que o
substrato em que construído o culto umbandista era espírita (kardecista).
P: Então,
vocês estão de acordo com a afirmação de que Zélio de Moraes “kardequizou” a
Umbanda?
R: Não exatamente.
Zélio de Moraes não “kardequizou” o culto umbandista porque, em suas origens,
ele já nasceu “kardequizado”. É possível gostar ou não dessa influência
“kardecista” na Umbanda, mas se críticas podem ser feitas nesse sentido, elas
devem dirigir-se à própria Umbanda, que já nasceu assim.
P: Contudo, há
vários segmentos ou vertentes umbandistas que não trazem essa influência
“kardecista”, certo?
R: Correto. O que
houve, nesse caso, foi uma popularização do nome Umbanda na primeira metade do
século XX, vez que vários locais em que se praticava a Macumba, o assim chamado
“baixo espiritismo” e outros cultos inseridos no cenário da religiosidade
afro-brasileira passaram a definir-se como umbandistas.
P: Por que
isso ocorreu?
R: Pelo fato de a
Umbanda ter-se tornado mais e mais respeitada pela classe média branca, de
sorte que, enquanto a Umbanda passou a ser menos perseguida pela sociedade e
pelas autoridades públicas, esses outros cultos continuaram a ser fortemente
discriminados. Diante disso, por uma questão de sobrevivência, vários líderes
desses outros cultos optaram por se identificarem como umbandistas.
P: O que vocês
acabam de afirmar é uma prova muito concreta de que a Umbanda passou por um
processo de embranquecimento e de aburguesamento...
R: Na verdade, não.
A Umbanda já nasceu desse modo, fortemente influenciada pelo espiritismo
francês e despida de práticas consideradas violentas ou inaceitáveis, mas ainda
então presentes em outros cultos, como a Macumba.
P: Mas Zélio
de Moraes não passou a denominar o seu segmento, a partir de um determinado
momento, de “Linha Branca de Umbanda e Demanda”?
R: Sim.
P: E não está
aí a prova da estratégia de embranquecer a Umbanda?
R: Não. A referência
à “Linha Branca”, nessa época, dizia respeito à dicotomia entre magia branca e
magia negra, isto é, entre magia para propósitos benéficos e maléficos
respectivamente. Ainda que esses termos hoje sejam inadequados e não mereçam
mais ser usados, pois podem perpetuar ideias racistas, a noção de magia negra
no início do século XX não dizia respeito, necessariamente, à magia africana,
mas à magia maligna, fruto do pensamento de ocultistas franceses então muito em
voga, como Eliphas Levi. Esses ocultistas, acrescente-se, não cogitavam de
magia africana em suas obras, até porque desconheciam o tema, mas, valendo-se
de antiga nomenclatura europeia, chamavam a magia benéfica de magia branca e a magia
maléfica de magia negra.
P: Mas que
dizer, então, da denominação “Umbanda Pura” utilizada por seguidores de Zélio
de Moraes?
R: Essa expressão
não se originou no meio religioso mais diretamente vinculado a Zélio de Moraes,
mas foi utilizada pela pesquisadora norte-americana Diana Brown em conhecida
tese acadêmica sobre a Umbanda, cujos erros epistemológicos já tivemos a
oportunidade de evidenciar. Se essa expressão foi porventura utilizada por
umbandistas ligados a Zélio de Moraes, então certamente o terá sido para
diferenciar o culto “original” de algumas vertentes que já se faziam presentes
no Brasil à época em que essa pesquisadora realizou seus estudos. Melhor
dizendo, nunca houve uma “Umbanda Pura” de Zélio de Moraes no sentido de “purificação”
ou “embranquecimento” de uma Umbanda preexistente e de contornos mais
africanos.
P: Vocês
negam, então, que há racismo no seio do movimento umbandista?
R: De modo algum.
Lamentavelmente, o racismo existe e precisa ser duramente combatido.
P: Poderiam
discorrer mais a esse respeito?
R: Desde o
princípio, surgiram lideranças umbandistas que tentaram retirar o elemento
africano do culto umbandista. Não é preciso dizer que a motivação dessas
lideranças era racista e merece ser combatida.
P: A visão de
vocês, portanto, é a de que Zélio de Moraes jamais pretendeu embranquecer a
Umbanda?
R: A Umbanda não
nasceu africana, mas sim mestiça. Ela sempre foi uma amálgama de tradições
africanas, indígenas e europeias (Catolicismo e Espiritismo). Pretender extirpar
qualquer um desses veios originais traduziria o equívoco de se querer “embranquecer”
ou “africanizar” a Umbanda. A Umbanda é, a um só tempo, africana, europeia e
indígena. Em sendo assim, o trabalho de Zélio de Moraes foi a constituição de
um culto religioso sincrético, não puramente branco, negro ou indígena.
P: Vocês não
responderam inteiramente a pergunta formulada...
R: Indo direto ao
ponto. Ainda que polêmico, se se quiser criticar Zélio de Moraes, a crítica
deveria se voltar ao fato de a religião por ele criada ter embranquecido e
aburguesado a macumba carioca, tese respeitável defendida, entre outros, por
Renato Ortiz. Assim, aqueles que acusam Zélio de Moraes de ter embranquecido a
Umbanda, na verdade, seguindo uma linha academicamente mais coerente, deveriam
criticar a própria Umbanda como movimento religioso embranquecedor da Macumba.
P:
Poderiam ser mais claros?
R: Sob um ponto de
vista sociológico e antropológico, a Umbanda pode ser vista como “a morte
branca do feiticeiro negro”, título impactante da relevante obra de Renato
Ortiz. Não foi Zélio de Moraes, assim, que embranqueceu a Umbanda, mas, talvez
tenha sido ele o primeiro a embranquecer a Macumba.
P: Zélio de
Moraes, portanto, era racista?
R: Não nos parece
que tenha sido. Além de ser essencial se analisar o pensamento de qualquer ser
humano à luz do momento histórico e do ambiente cultural em que viveu, o
pensamento de Zélio de Moraes inclinava-se muito mais a um viés nacionalista,
brasileiro, de sorte a dar vazão a uma religiosidade mestiça como mestiço é o
povo brasileiro, fruto da amálgama de três povos: o europeu, o africano e o
indígena.
P: Mas há quem
possa considerá-lo racista...
R: Sem dúvida. Sob
um ponto de vista acadêmico, contudo, o que se quer frisar, aqui, é que não
houve um processo de embranquecimento da Umbanda, visto que ela já nasceu
sincrética. O que se pode discutir com proveito, isso sim, é se a Umbanda foi
um processo de embranquecimento da Macumba e de outros cultos afro-brasileiros
mais antigos.
P: Ao se
recusarem a aceitar que o relato de Zélio de Moraes é um mito de fundação,
vocês também atestam que a Umbanda nasceu em 15 de novembro de 1908?
R: Ainda não há
dados históricos incontestes sobre a data exata do início dos trabalhos de
Zélio de Moraes. Não se sabe ao certo se o relato por ele narrado realmente
ocorreu em meados de novembro de 1908. Contudo, não é também exata a afirmação,
encontrada nas teses de alguns acadêmicos, notadamente de Diana Brown, de que
os trabalhos de Zélio de Moraes teriam se iniciado apenas nas décadas de 20 ou
30. Afinal, os artigos de Leal de Souza, posteriormente reunidos em livros (“No
mundo dos espíritos” e “O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda”)
dão prova de que os trabalhos espirituais de Zélio de Moraes iniciaram-se muito
antes disso.