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terça-feira, 16 de outubro de 2018

TIA MARCELINA



TIA MARCELINA DE MACEIÓ

Povina Cavalcanti

Revista Fon Fon (RJ), n. 52, 26 de dezembro de 1936

Tia Marcelina, Chico Foguinho e alguns outros feiticeiros profissionais exerciam livremente a prática do seu ofício na pacata e burguesa Maceió, lá pelos idos de 1910.
O famoso Xangô[1] da Tia Marcelina (era assim conhecido o Candomblé da negra africana) ficava situado em um baixio à margem dos trilhos da Great Western, quase em frente à Rua da Aroeira, habitada por mascates e bicheiros.
Ali se processava o mais perfeito ritual fetichista.
Todas as divindades do culto negro, das mais poderosas aos orixás menos conceituados, recebiam em sacrifício as manifestações da crença primitiva, festejados com solenes batuques.
Era voz geral que o governador devia a sua força política aos favores do terreiro da Tia Marcelina.
Conheci essa preta feiticeira.
Não sei se meus olhos já viram, depois, mulher mais feia, no mundo.
Conheci também os “santos” de seu culto. E vi, ao som cavo e soturno de seus atabaques, a dança dos negros suarentos, desarticulando-se em trejeitos de símios, em contorções de acrobatas macabros.
Aquele espetáculo foi o primeiro caminho aberto no meu espírito para os domínios da bruxaria, a cujo misterioso país, cheio de sombras e duendes, me levou a mão de uma velha serviçal de minha família, tão boa quanto ignorante e supersticiosa.
   No meu raciocínio de criança, argumentava que, se o governador seguia à risca os conselhos da Tia Marcelina – por que eu, um simples colegial, não os ouviria?
Comi muito bolo de acaçá no terreiro da preta africana. Na hora do exame, vali-me de Ogum e respondi certo à arguição do professor.
Um dia, voltava eu do colégio, quando encontrei na rua um cortejo esquisito. Uma multidão desenfreada agitava no ar, como troféus, os Santos, os Orixás, os chocalhos, os ganzás, os instrumentos e toda a complicada família dos fetiches da macumba da Tia Marcelina.
Olhei, pasmo, a estranha procissão.
A indumentária dos pais de santo, as contas, os seixos, tudo era conduzido aos gritos de “Abaixo os lebás!”
(Lebá, representação demoníaca no culto fetichista, era o apelido dos políticos governistas).
Explicaram-me tudo. Aquilo era a salvação do Norte.
O governador fugira do palácio. A Tia Marcelina agonizava.
Deram-lhe uma surra tremenda!
De agora em diante Alagoas – livre dos “lebás”, ingressava no regime da verdadeira democracia.
Tia Marcelina, miserável preta africana, você é um símbolo. Você veio da costa da África para ser mártir da política e um motivo do folclore.
A democracia lhe deu esse sacrifício


[1] Xangô aqui designa um culto afro-brasileiro.

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